No Sul Global, economias digitalizadas e plataformizadas são propícias ao avanço da extrema direita. Saída passa pelas mulheres


A precarização e a plataformização do trabalho favorecem o vínculo com a extrema direita, mas mulheres – principalmente mulheres negras – aderem menos a essa lógica e têm sido a barreira de contenção do avanço da política extrema. A reflexão foi apresentada na décima sexta sessão do Teach-In, série de Educação Política da South Feminist Futures, conduzida pela antropóloga brasileira Rosana Pinheiro-Machado. 

Com o tema “Economia Digital e Extremismo Político”, a sessão, realizada em 26 de setembro de 2024, explorou vários impactos negativos da economia digital, mais especificamente a plataformização – que seria a precarização crescente do trabalho por meio de plataformas tecnológicas. Processo que inclui a “uberização” mas também a dependência de plataformas e redes como o Facebook e o Instagram para a subsistência financeira. 

Rosana, professora da University College Dublin (UCD), usou o caso brasileiro para ilustrar como o trabalho precário e a plataformização podem levar pessoas a aderir a ideias neoliberais e de extrema-direita. Seu atual projeto de pesquisa no Digital Economy and Extreme Politics Lab (DeepLab), no entanto, abarca também os contextos de Índia e Filipinas pois, segundo a pesquisadora, não há como entender o avanço do autoritarismo no sul global usando as lentes do Norte. “São processos completamente diferentes. No Norte global fala-se sempre de um contexto de recessão que leva à perda do Estado de bem-estar social, à culpabilização de imigrantes e à adesão à extrema direita. Mas, por exemplo, o Brasil vivia um auge econômico. Brasil e Filipinas têm democracias muito mais recentes e viram a ascensão da extrema-direita enquanto suas economias estavam emergentes, e não em crise ou recessão”, destacou. 

Em 25 anos de pesquisas etnográficas junto a trabalhadoras e trabalhadores precarizados no Brasil (cujo perfil socioeconômico pode ser resumido no fato de serem pobres, mas não pobres o suficiente que os qualifiquem para benefícios sociais), Rosana Pinheiro-Machado notou importantes transformações à medida que as novas tecnologias se inseriram no dia a dia dessa população a ponto de serem hoje cruciais para sua subsistência econômica. Essas observações levaram a antropóloga e sua equipe a formular a hipótese de que a plataformização do trabalho, assim como a precarização, favorece o vínculo com a extrema-direita. 

Essa hipótese compõe um conjunto de quatro grandes observações ao longo das décadas de investigação. A primeira antecede a era da digitalização e aponta que a precariedade econômica potencialmente desperta sentimentos de rejeição política – fato que é muito explorado pela extrema-direita populista, como Jair Bolsonaro no Brasil ou Narendra Modi na Índia. Como frisou Rosana Pinheiro-Machado, que desde 1999 faz estudos de campo em contextos onde o Estado só se faz presente pela repressão, essa rejeição é totalmente legítima. “Ao longo de 20 anos, o Estado nunca apareceu para regulamentar ou formalizar, apenas para bater. Estamos falando de pessoas desprovidas de qualquer proteção estatal, então o desprezo pela política nesse âmbito era legítimo”, reforça. 

No entanto, há discrepância nesse apoio à extrema-direita populista, que tende a ser mais forte entre homens. As mulheres – especialmente mulheres negras – historicamente resistem mais a líderes autoritários.

Um terceiro ponto, e muito preocupante, é que o crescimento da economia digital entre os setores precarizados transformou o sentimento inicial de rejeição política em um sentimento anti-sistema ou anti-establishment, o que facilita, portanto, o encontro com a extrema direita. Um dado que ilustra o problema é que mais da metade dos envolvidos nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023 no Brasil – insurgência organizada pela extrema direita e influenciada pelo ataque ao Capitólio dos EUA que invadiu e depredou as sedes dos Poderes do país para tentar instituir um golpe de Estado –  eram trabalhadores informais ou microempresários, além de majoritariamente homens. 

Neste processo, embora ainda existam diferenças por raça e gênero, elas tendem a diminuir. Isto é, embora as mulheres (principalmente negras) ainda sejam a principal resistência, há, com a plataformização, maior adesão delas a nomes da política extrema. “O risco que hoje corremos é que a discrepância diminua, mas dificilmente – e essa é nossa fonte de esperança – veremos uma equiparação entre homens brancos e mulheres negras. Mas a diminuição do gap já é preocupante”. 

Características da plataformização

O que a antropóloga chama de plataformização, e que cresceu muito nos últimos anos, vai para além da chamada “uberização”. No caso do Brasil, é fundamental falar do papel do Instagram, já que estima-se que cerca de 25% da população economicamente ativa depende da plataforma para obter renda. Essa larga parcela, não raramente com pouca ou nenhuma escolarização, teve que mergulhar nas redes sociais – dominadas por uma lógica neoliberal, piramidal, altamente desigual e que reforça desigualdades. 

Todos esses novos atores buscam aprender e se adaptar às plataformas e, assim, passam a viver o mundo do marketing digital, de influencers. “A pessoa quando vai se plataformizar precisa de ‘coaches’ do marketing digital, e nisso cai em uma rede de extrema direita, porque não há nesse momento nenhuma alternativa [nesse ecossistema]”, resume Rosana Pinheiro-Machado. 

E é aí que o antigo sentimento de rejeição política passa a ser completamente cooptado pela extrema direita – que domina o ecossistema dessas plataformas – e transforma-se em anti establishment. Resumidamente, segundo a professora brasileira, é um processo de encontro entre valores ideológicos convergentes e a concepção da infraestrutura tecnológica. Ou seja, um alinhamento ou predisposição ideológica que é potencializada, 

transformada e de certa maneira até criada pela tecnologia (cuja infraestrutura é neoliberal, e onde os influencers que compõem o ecossistema atuam como a ponte para a extrema direita). 

Os fatores de radicalização seriam: as condições de trabalho, já que as pessoas estão muito mais isoladas do que no trabalho presencial, são vulneráveis a choques econômicos, têm muita raiva, endividamento, e estão sob grande pressão para vender online, com muita competição; a subjetividade do trabalho, pois querem ser vistas como empreendedores, e não trabalhadores, o que os faz sentir menos marginais em um sistema que estigmatiza a economia informal; e a cooptação populista, que é a capacidade de sedimentar no cotidiano o discurso de que quem trabalhar duro vai conseguir enriquecer por mérito próprio. A falta de regulamentação dessas redes é ainda outra camada que compõe o problema. 

O resultado dessa complexa teia é que apesar das muitas promessas de enriquecimento oferecidas nas plataformas, nada muda em termos econômicos para as pessoas comuns. “Vamos lançar um relatório que mostra que essa lógica é uma falácia. As mulheres negras são as que mais tentam ganhar dinheiro no mundo digital, mas a pirâmide de vendas continua imóvel”, descreve a antropóloga, que monitora uma base de mais de um milhão de perfis e que enfatiza a urgência de um programa de empreendedorismo com valores coletivos e feministas para as mulheres. 

Preocupações e esperança 

Neste cenário, não faltam alertas e motivos de preocupação: a digitalização da economia informal pelo Instagram reforça valores antidemocráticos através da homogeneização ideológica; as redes sociais aceleram processos de individualização e aspirações de mobilidade social. Mas também existem e sempre existiram nuances, exceções e resistências – e elas podem indicar caminhos. 

Como reforçou a antropóloga durante o 16º Teach-In, as mulheres ainda resistem muito à extrema direita e a políticos autoritários – no Brasil, nos EUA, na Argentina e em todo o mundo. E considerando suas realidades e aspirações – por renda extra, por um trabalho digno que possa ser equilibrado com tarefas de cuidado, etc -, é urgente criar e implementar políticas públicas de emprego digno que sejam interseccionais e não se baseiem em valores individualistas. “E também programas inclusivos e de amplo alcance para o empreendedorismo digital que não sejam dominadas por influencers mas sim por capacitações por quem trabalha empreendedorismo com chaves feministas, antirracistas e interseccionais”, pontuou a painelista.

Rosana Pinheiro-Machado, para quem a resposta possível a este cenário é o emprego pleno e digno, finalizou sua fala com uma centelha de esperança em meio a dados difíceis: “As mulheres que buscam atividades dignificantes também têm um discurso muito forte de riqueza, um desejo de tornarem-se milionárias e uma crença de que isso será possível pelo trabalho duro. E mesmo assim elas continuam não votando na extrema direita [no Brasil], embora já aceitem alguns nomes. Isto é: há algo da lógica feminista que está pulverizado na 

sociedade brasileira, e que continua forte. Apesar do conservadorismo, hoje em dia o feminismo é a força que consegue falar para todas as mulheres”. 

A iniciativa

A série de Educação Política da South Feminist Futures é uma iniciativa que procura fortalecer o diálogo inter-regional e intergeracional, bem como construir uma comunidade feminista inter-regional. A série aborda vários tópicos para interrogar e fortalecer a compreensão das questões que moldam as condições no Sul Global.

O South Feminist Futures é um coletivo que abre espaços autônomos para que as feministas do sul global articulem soluções para as múltiplas crises do mundo. Nosso objetivo é alcançar a produção de conhecimento decolonial e trocar educação política, estratégias e redes para preencher a lacuna existente no investimento e na representação da análise e das experiências de mulheres, pessoas trans e não binárias do sul global.

Resumo da apresentação de Rosana Pinheiro-Machado, escrito por Nana Soares.

Rosana Pinheiro-Machado is a professor at the School of Geography, University College Dublin (UCD). She directs the Digital Economy and Extreme Politics Lab (DeepLab). She is the principal investigator for the project “Flexible Work and Rigid Politics in Brazil, India, and the Philippines”, funded by the European Research Council (ERC). Her research expertise centres on authoritarianism and populism in the 21st century, focusing on labour precariousness, digitalization, and gender issues.

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