Romper hierarquias e resgatar coletividades: a proposta ecofeminista para viver num mundo em crise
Diante de um cenário de colapso climático causado pela exploração desenfreada dos recursos naturais e que é inerente à racionalidade capitalista, a única saída é restaurar as coletividades e resistir à mercantilização do mundo. Tarefa essa que é intrinsecamente ligada aos feminismos do sul global e a suas práticas e saberes. Essa foi a mensagem chave deixada pela pesquisadora Andrea Santos Baca na terceira sessão da série de educação em Economia Política Feminista de South Feminist Futures. Com o tema “O que é ecofeminismo?”, a sessão, realizada em 27 de janeiro de 2023, explorou as ligações entre ecologia e feminismo, reforçando a centralidade dos saberes de comunidades tradicionais para o enfrentamento da emergência climática.
Andrea, que é professora mexicana na área de Economia Política Crítica e Economia Política do sistema agroalimentar na Universidade Federal do ABC – UFABC (Brasil), discutiu o quadro ecofeminista a partir do atual contexto climático e de seus prognósticos, e analisou como a igualdade de gênero, as alterações climáticas e a injustiça social estão inter-relacionadas, bem como as mulheres e grupos tradicionais são desproporcionalmente afetados.
Contexto climático e seus desafios
Se há décadas cientistas têm chamado a atenção para os efeitos devastadores das atividades humanas sobre a natureza, a novidade, na avaliação de Andrea Baca, é que os prognósticos pessimistas têm ganhado terreno, sendo agora centrais em grandes arenas internacionais. Entre os principais problemas estão o aquecimento global, especialmente por causar a elevação do nível dos oceanos (regiões onde vivem 80% da população mundial); o crescente desmatamento e perda irreversível de biodiversidade; a dificuldade na produção de alimentos, uma vez que a agricultura é extremamente dependente do clima e de suas variações; a manipulação genética na produção de alimentos (especialmente de origem animal) que pode levar a novas doenças; a escassez de água doce potável; e a exploração de recursos (petróleo e minérios, por exemplo) até seu quase esgotamento.
As potenciais consequências desse lastro de destruição são devastadoras: aumento da fome; migrações massivas causadas por alterações climáticas; feminização da pobreza, surgimento de novas doenças; corrida por matérias-primas; conflitos bélicos derivados de tensões ambientais (como corridas por recursos escassos); ‘apartheids ambientais’ (cenário em que populações mais ricas apropriam-se de recursos naturais e excluem o acesso da maioria a eles); aumento da violência no mundo rural, incluindo assassinato de defensores de direitos. Ainda, há o risco do crescimento do discurso ecofascista, os “posicionamentos cada vez mais frequentes de que para salvar o planeta é necessário reduzir o tamanho da população. Mas não toda a população e sim as que sempre têm sido marginalizadas e vistas como ameaças”, como explicou Andrea na sessão.
Do negacionismo à cooptação corporativa
Diante desse prognóstico nada esperançoso, supostas alternativas ganham cada vez mais força nas arenas globais. “Por muito tempo no tabuleiro internacional predominou o negacionismo, sempre tentando reduzir a importância da intervenção da humanidade nestes fenômenos. Na última década isso tem mudado, indo em direção ao negócio, à cooptação corporativa. Sobretudo nos últimos cinco anos, quando tem se trabalhado na construção de um novo pacto verde, um new green deal”, criticou Andrea, reforçando que esse pacto inclui muitas das empresas que têm destruído o planeta. São apontados como “alternativas”: mercado de carbono; agricultura climaticamente inteligente; biotecnologia e biologia sintética; agricultura digital; bioeconomia e bioengenharia. Como explicou a professora da UFABC, essas “soluções” nada mais são do que uma estratégia do capitalismo de lucrar para ‘resolver’ os problemas que ele mesmo criou.
“O discurso é o de que é necessário desenvolver a ciência [branca e colonial], novas tecnologias e conhecimento, e ‘empoderar mulheres, comunidades indígenas, camponeses e populações do sul global’ é um detalhe”, reforçou a pesquisadora. “São falsas alternativas que devem ser entendidas pela constante necessidade de apropriar-se de riquezas coletivas”.
Saídas desde o sul global
Então como enfrentar atores tão poderosos? Primeiro, é importante entender a estrutura desse modelo e como ele foi constituído. Em suma, a racionalidade capitalista é uma combinação de elementos como branquitude, androcentrismo, especismo, exploração e expropriação. E essa combinação cria o que chamamos de sul global – espaços de apropriação da natureza, do trabalho alheio, da produção de alimentos para o norte global.
Em sua exposição, a especialista em Economia Política Crítica e Economia Política do sistema agroalimentar, Andrea Santos Baca, reforçou que foi preciso muito tempo para constituir os “sujeitos adequados ao capitalismo”, em um verdadeiro processo de engenharia social que visa mais do que um modelo econômico, mas uma nova compreensão do mundo. Retomando conceitos de Karl Marx e Silvia Federici, ela lembrou que a racionalidade capitalista, em seu objetivo de mercantilizar tudo e gerar lucro, divide o mundo em opostos, atribuindo valores diferentes e hierárquicos a cada um dos pólos: sociedade/natureza; humano/não-humano, homem/mulher, apenas para citar alguns. E a sociedade, arena da razão e do domínio, teria primazia sobre a natureza, o humano sobre o não-humano e o homem (ou masculino) sobre a mulher (ou feminino).
“Essa sociedade pensada como uma mera soma de indivíduos – ou seja, descoletivizada – precisa não apenas de proprietários privados mas também da diferenciação entre homens e mulheres. Simplificando um debate amplo, a própria construção do que é ser mulher/homem, onde a mulher está mais próxima à natureza, é resultado do funcionamento desse módulo civilizatório”, ressaltou Andrea. E complementou: “As feministas já denunciaram o propósito dessa degradação, que é permitir que o trabalho das mulheres seja invisibilizado. Todo o trabalho de reprodução, antes feito coletivamente, passa a ser concentrado nas mulheres e no interior das casas”.
E é de quem está nessa posição inferiorizada – mulheres, povos explorados do sul global – que saem as reais alternativas a esse sistema, que necessariamente passam por desmantelar suas bases. Ou seja, restaurar as coletividades destruídas e constantemente apropriadas pelo capital, chamando contra a mercantilização dos territórios e dos corpos.
“[O ecofeminsmo] é uma crítica ao modo civilizatório imposto sobre como deve ser o mundo e as relações sociais. Por estarmos, nessa divisão hierárquica, junto à natureza, nossa voz [feminina] tem a capacidade de criticar e desmontar todo esse conjunto de disciplinamentos sociais e visões do mundo, incluindo a destruição da natureza. É possível mobilizar para fazer essa crítica e defender os recursos naturais dessa nova onda de iniciativas. O central é recuperarmos a luta pela autodeterminação e pela defesa do que temos construído coletivamente, onde as mulheres têm tido grande papel”, resumiu Andrea.
Essa resistência é colocada em prática, por exemplo, via agroecologia. Como definiu a professora da UFABC, a luta pela soberania alimentar é para retomar o controle e a autodeterminação sobre os sistema alimentares. Nessa luta, as mulheres e povos tradicionais são protagonistas. “Tudo o que conhecemos hoje como agroecologia, [ou seja,] as práticas alternativas que desafiam dicotomias homem/sociedade e a agricultura capitalista, são práticas de mulheres e que sempre foram invisibilizadas pelo sistema”. Em outras palavras, as reais alternativas ao colapso climático não sairão de uma biblioteca do norte global, mas sim dos conhecimentos de mulheres, povos indígenas e agricultores e agricultoras tradicionais, e do que vêm fazendo há muito tempo. “Não há receita pronta para a resistência, mas ela certamente passa por reconhecer que já existem conhecimentos produzidos desse lado”, disse.
No entanto, a pesquisadora deixou um alerta: reconhecer a centralidade das mulheres na luta ecossocialista não significa aderir a essencialismos. A luta, pelo contrário, é para romper com as dicotomias e hierarquias. “Não é porque nós estamos associadas à natureza que vamos salvar a natureza, isso seria replicar e perpetuar essa visão e separação do mundo criada e mobilizada pelo capitalismo para a exploração. Não é identificar as mulheres com o natural, mas sim entender que, pela configuração das opressões, nosso posicionamento nos permite questionar até as últimas consequências de todos os tipos de dicotomias hierárquicas”.
A iniciativa
A série de Educação Política da South Feminist Futures é uma iniciativa que procura fortalecer o diálogo inter-regional e intergeracional, bem como construir uma comunidade feminista inter-regional. A série aborda vários tópicos para interrogar e fortalecer a compreensão das questões que moldam as condições no Sul Global.
O South Feminist Futures é uma organização que abre espaços autônomos para que as feministas do sul global articulem soluções para as múltiplas crises do mundo. Nosso objetivo é alcançar a produção de conhecimento decolonial e trocar educação política, estratégias e redes para preencher a lacuna existente no investimento e na representação da análise e das experiências de mulheres, pessoas trans e não binárias do sul global.
Andrea Santos Baca, is a Mexican professor in the area of Critical Political Economy and Political Economy of the agri-food system at Federal University of ABC, Brazil. She holds a master’s degree in Social Sciences (FLACSO-México) and a Ph.D. in Economics (UFF-Brazil). In 2013, she won first place in the Juan F. Noyola International Prize for Research in Economic Development 2012-2013 of CEPAL-UNAM with her master’s thesis. The research was published in 2014 under the name The food consumption pattern of free trade by CEPAL-UNAM. Currently she researches about the contradictions of capitalist food systems, the agrarian question and the alternatives developed by the peasant and indigenous populations in Latin American. She is part of the Interdisciplinary Nucleus of Studies and Research in Marx (NIEP-MARX), the Brazilian Network for Research in Food and Nutrition Sovereignty (Rede PENSSAN) and the International Agrifood Studies Network REDAGRI. In 2020-2022 she participated in the international project Extimacies: Critical Theory from the Global South and currently is part of the interdisciplinary research project : Global Politics and indigenous peoples.
Summary of Andrea Baca’s presentation, written by Nana Soares.