Somar, não dividir: o transfeminismo e sua luta pela liberação de todas as mulheres

“Queremos que as mulheres sejam cada vez mais reconhecidas em suas pluralidades, em suas expressões de gênero não normativas, e que cada vez mais a gente entenda que as expressões de gênero são múltiplas”. Assim resume Hailey Kaas, ativista brasileira, as agendas do transfeminismo. Hailey ministrou a sétima sessão do Teach-In, série de Educação Política de South Feminist Futures, que foi dedicada a esse tema. Realizada no dia 28 de junho de 2023, a sessão buscou explicar, desde uma perspectiva do sul global, o que é o transfeminismo, sua história e principais pautas.

Hailey Kaas, transfeminista, escritora e tradutora, conduziu o diálogo partindo da experiência brasileira, conectando-a com outros países. Um dos pontos centrais foi a luta do transfeminismo – inclusive em relação a feminismos dominantes – para a descentralização do gênero enquanto elemento central das identidades – levando à hierarquização de alguns corpos sobre outros, desencadeando e autorizando várias violências. Como enfatizou Haley, a a construção e normalização de identidades fixas e binárias é também uma construção colonial, ignorando e apagando diversas possibilidades e expressões de gênero anteriores.

“Queremos que as pessoas se libertem de concepções rígidas de gênero e que não sofram violência por causa disso”. Nesse sentido, a aliança com os feminismos é fundamental para “avançar a discussão sobre direitos das mulheres como um todo, não só para incluir pessoas trans. Mas as pessoas trans têm uma posição privilegiada para discutir gênero e fazer avançar ideias que não estejam tão alicerçadas em uma ‘normalidade’ de corpos e distinções de gênero a qual acabamos condicionadas”, disse ela.

Ter essa diretriz tão nítida foi em si fruto de anos de trabalho ativista e de produção de conhecimento. Hailey, em sua exposição, destacou a construção do movimento transfeminista no Brasil notadamente a partir dos anos 2010. “Surge ainda muito incipiente quando o movimento trans histórico começa a se preocupar com questões de machismo, formas de violências sofridas por mulheres trans e travestis* que não necessariamente partiam só da transfobia”, relembra. Especialmente violências sofridas no exercício do trabalho sexual – realidade para grande parte dessa população -, tanto da parte do Estado, quanto de clientes.

É nessa época que são dados os primeiros passos para articular os feminismos com questões trans. E é quando a própria Hailey cria o blog Transfeminismo, justamente com a intenção de organizar a discussão sobre transfeminismo no Brasil e traduzir textos de referência. “Começamos a pensar como a teoria feminista podia contribuir para que as pessoas trans no Brasil conseguissem ter maior entendimento de suas próprias identidades. Era uma forma de autorreflexão em relação à propria condição de ser trans”, disse.

Os principais eixos de pensamento e ação eram: 1) pensar a sexualidade das pessoas trans para além da heterossexualidade; 2) pensar e expandir entendimentos sobre diferentes expressões de gênero; 3) despatologização das identidades trans; e 4) conceitualizar e trabalhar em torno da ideia de cissexismo. “Hoje, 10 anos depois, algumas dessas discussões já estão em outro patamar”, celebrou Hailey, que pontuou a efetiva inserção de pautas e questões trans na agenda pública brasileira ao longo da década.

Em relação ao primeiro eixo, a ativista e escritora lembra que foi importante pautar e reforçar que nem todas as pessoas trans são heterossexuais. Isto é, desvincular sexualidades e identidades de gênero e pensar além da heterossexualidade compulsória. Sobre as diferentes expressões de gênero, o trabalho foi sedimentar que não é necessário que pessoas trans respondam às expectativas de gênero cisgêneras impostas pela sociedade. “Feminilidades e masculinidades passam a ter posição central na discussão transfeminista para tirar um pouco da visão rígida de gênero, principalmente no caso de mulheres trans e travestis”, explica.

A despatologização foi uma luta forte ainda antes da decisão da Organização Mundial de Saúde (OMS) retirar os transtornos de identidade de gênero da lista de doenças mentais, em 2018. “E embora muitos países do Ocidente tenham feito isso, em outros a ideia da patologização ainda é muito presente”, ressalvou. Por fim, em relação ao cissexismo, Hailey Kaas demarcou a importância do conceito em contraponto à transfobia – “uma violência mais imediata, de certa forma menos sutil”. O cissexismo demarca a “estrutura na qual a sociedade está organizada e que produz duas identidades coerentes, alinhadas com um certo tipo de corpo”. São as tríades homens-pênis-masculinidade e mulheres-vagina-feminilidade.

Todas essas expectativas e a ótica binária e calcada num dimorfismo sexual com dois corpos distintos e opostos configuram um pensamento que não só exclui pessoas trans mas limita a forma de entender o gênero. “Essa é outra contribuição do transfeminismo: pautar que a forma que pensamos gênero precisa mudar”, destacou a ativista, fazendo referências a ativistas e teóricos queer que questionaram a “supremacia” ou o caráter até então intocável da ideia do sexo biológico. “Para avançar na discussão sobre transfeminismo, precisamos superar a verdade do sexo”.

Por fim, Hailey Kaas trouxe agendas contemporâneas dos transfeminismos, como a luta por direitos reprodutivos. A gestação de pessoas transmasculinas, por exemplo tem enfrentado percalços no judiciário, para reconhecimento das configurações familiares, e no acesso à saúde, uma vez que profissionais raramente estão preparados para atender as realidades desses corpos. Nesse sentido, Hailey reforçou que a criação de uma corrente específica do feminismo se deu por questões de representatividade e reivindicação de direitos específicos, mas que não se encerra nela mesma. “O transfeminismo também é feminismo, e acho que os outros deveriam se aproveitar da discussão transfeminista, principalmente no que diz respeito a pensar o gênero”.

A iniciativa: a série de Educação Política da South Feminist Futures é uma iniciativa que procura fortalecer o diálogo inter-regional e intergeracional, bem como construir uma comunidade feminista inter-regional. A série aborda vários tópicos para interrogar e fortalecer a compreensão das questões que moldam as condições no Sul Global.

O South Feminist Futures é um coletivo que abre espaços autônomos para que as feministas do sul global articulem soluções para as múltiplas crises do mundo. Nosso objetivo é alcançar a produção de conhecimento decolonial e trocar educação política, estratégias e redes para preencher a lacuna existente no investimento e na representação da análise e das experiências de mulheres, pessoas trans e não binárias do sul global.

*Construção de gênero bastante específica da América Latina na qual pessoas transfemininas, em geral, não se identificam nem como homens ou mulheres, mas como travestis. Está profundamente atravessada por marginalização. Às travestis, frequentemente recai o estigma da prostituição, e também são muito associadas a estereótipos de gênero associadas ao masculino, como agressividade e hipersexualização.